top of page

Capitania das Trocas: Parte II

“Tudo que comia vinha pelo giz!”⁷, cantou Antonio derramando o caneco de água ardente, “por achar nas calças melhor fraldelim!”.

“cuidado Antonio!”, exclamou Marcelino com certa raiva, “minhas calças, talvez não acredite, gostam de muchachas, não de sua caneca!”

“Marcelino, todos os dia o vejo no brejo com tal Serafim!”, disse Antonio, gargalhando.


Todos riram das brincadeiras de Antonio, inclusive Marcelino; a casa era a de Sinhá Joana, famosa pelas mulheres descobertas de panos e vergonhas; ficava à Rua das Cabeças próxima ao Pocinho, com a entrada escondida por detrás de um pano suspenso à porta comum de uma sala; era oculta o bastante para evitar olhares sem cifras e conhecida o suficiente para ter clientela.


“Fernão, além das liras do Boca baihano, conheces o sarambeque de Frei João?” perguntou Marcelino. A casa possuía um tocador regular de viola, um certo Fernão Roiz Vassalos⁸, homem esguio de estatura baixa. Fernão era cabra⁹, assim como Marcelino e quase todos que ali estavam ou passavam. Sabia-se que as casas mais discretas ficavam próximas a Câmara, talvez pela conveniência ou por ironia. Senhoras de Rasoura ao dia e Sinhás Joana à noite.


“Creio que tal solfa esteja longe da memória.”, disse Fernão, “porém se queres machear hoje”, disse o homem sorrindo, “talvez goste dessa”.


Muito gostoso Nhanhazinha

De andar bulindo contigo

Quando vejo que comigo

Tu estás enfadadinha

Ficas tão mungangueirinha¹⁰


“Antonio, Marcelino... ainda é cedo e não quero passar por bufão até o pinto virar galo”, disse João da Cruz já de pé. “O Rosário é distante e a sola já está gasta.”


“Espere João! o Rosário, diferente de tu, não usa botas”, disse Antonio, que entorpecido pelas inúmeras canecas de água ardente não conseguiu segurar o riso e a bebida na mesma língua.


“Antonio, para ti tudo são vícios. Que te mordam!”. João da Cruz despediu-se de Marcelino levando uma mão ao chapéu e a outra ao pano que escondia os vícios de Antonio e as solfas maliciosas de Fernão.


“Villa Rica”..Arnaud Julien Pallière – óleo sobre tela, c.a 1820




⁷ “Marizápalos/Marinícolas”. HONRUBIA. Muguel Lopez; GUERRA, Gregório de Mattos. Século XVII.

⁸ BUDASZ, Rogério. Negros e violas no mundo luso-brasileiro nos séculos XVII e XVIII. IV Reunión Cinetífica, Victor Rondón: Santa Cruz. Bolívia, 2002.

⁹FONSECA, Marcus Vinícius. Pretos, pardos, crioulos e cabras nas escolas mineiras do século XIX. São Paulo: USP. 2007

¹⁰ “Os me deixas que tu dás”. Anônimo século XVIII

sobre o blog

 

um musicólogo, papeis velhos e o virtual

recentes
arquivo
bottom of page